Exposição: Bonson revisitado: percursos
Palácio Cruz e Sousa

Sérgio Bonson (1949-­‐2005) faz parte da vida dos moradores da cidade. Para quem foi seu contemporâneo sabe do que estou falando. Para quem chegou depois é preciso olhar a trajetória do artista e perceber sua presença no imaginário dos seus habitantes, nas páginas dos jornais mais antigos, nas tirinhas da Waldirene A AM, Henricão, Soiza, em Tudo pelo Soizial, numa imagem de uma barbearia, uma sala de ortopedia, num bar, num café. Com ele tudo era mais descontraído, uma maneira de ser engraçado, de tratar o humor afiado nos cartuns. Podia-­‐se encontrá-­‐lo ao dobrar uma esquina, sentado numa banquinho simples, com os lápis, as tintas em sua volta, defronte a uma paisagem que normalmente era um conjunto de edifícios que ele transformava em linhas e cores.

Seus trabalhos nos mostram uma cidade pictórica, um recorte do casario, um fundo de rua na escadaria da Igreja do Rosário, uma loja de sapatos, um bar, jogadores de dominó, uma padaria, um museu, a praça. Através de sua obra o artista permanece.

No convite de uma exposição no Museu Victor Meirelles, em 1999 Cleber Teixeira (1938-­‐2013) escreveu sobre Bonson: “Com seus inseparáveis lápis e seu bloco de desenho o artista percorreu as ruas e registrou o que viu. Tudo o que ele desenhou nós vemos todos os dias, mas o artista vê um pouco além. E dá forma ao que vê. Por isso esta exposição tem alguma coisa a mais: ela nos mostra a cidade dentro da cidade.” Fica o convite a partir da exposição atual, aos artistas e público em geral, de revisitar os lugares retratados por Bonson, de registrar, desenhar, pintar, fotografar, enfim, acentuar um percurso pelas ruas, compartilhando um registro do tempo presente. Michele Petry quer mostrar, com esta exposição e com sua dissertação sobre Bonson, a importância da obra do artista na vida da cidade, levantando documentos, acervos com a contribuição da família, dos amigos, de instituições como o Museu Histórico de Santa Catarina, o Palácio Cruz e Sousa.

Trilhar os caminhos dos artistas, registrar suas passagens é uma tarefa cultural através de um olhar do sensível, do coletivo, do social. Isto pode tornar a cidade mais humana, a arte mais humana. Cultura é um saber coletivo em permanente reconstrução. Numa passagem pelas ruas podemos nos deparar com a visão dos diferentes artistas, o percurso de diferentes artistas. Olhar a pintura de Victor Meirelles e perceber o quanto ainda temos do Panorama do Desterro, vislumbrar a pequena fresta entre os edifícios. Perceber onde Martinho de Haro simplificou a fachada na pintura da Igreja de São Francisco. Qual o ângulo escolhido por Bonson nos casarios da Praça. Contemplar ou fazer um desenho de um panorama, de uma igreja ou de um conjunto de sobrados numa praça é uma maneira de nos aproximarmos da linguagem destes artistas e tantos outros que retrataram a cidade.

O percurso é um ato de contemplação. “Não estamos no mundo, tornamo-­‐nos com o mundo, nós nos tornamos, contemplando-­‐o. Tudo é visão, devir. Tornamo-­‐nos universo” escrevem Deleuze e Guattari (2010). “Pintamos, esculpimos, compomos, escrevemos com sensações. Pintamos, esculpimos, compomos, escrevemos sensações. (…) A arte é a linguagem das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos sons ou nas pedras”. Ou seja, esta contemplação na qual utilizamos materiais para compor é também sensação. Em Bonson, a cor suave transporta um tempo, um calor da alma através dos materiais utilizados, a disciplina do ato de pintar, de apontar os lápis, a quantidade de tinta no papel, os diferentes manuseios dos pincéis. Ao olhar cada desenho ou pintura de Bonson, podemos conversar com o artista através de sua obra, sentir a energia do pintor sentado em seu banquinho, visitar alguns dos lugares que ele visitou. De suas obras podemos revisitar os lugares onde o artista preferia estar, onde se deparava com as formas de uma cidade viva em suas camadas no tempo, uma arquitetura do presente e do passado tornada visível. Podemos perceber que aspectos da paisagem e da arquitetura despertaram mais interesse, quais detalhes foram negligenciados. Alguns destes detalhes podemos perceber contemplando com atenção as ruas e a obra do artista.

Eu me incluo entre os que buscaram, e buscam inspiração em Bonson, seus traços, seus sombreados, suas cores. Inspiração para outros artistas, na tarefa de continuar a desenhar os fragmentos da cidade. Refletir sobre o quanto o desenhar e o pintar pode ser lúdico, o quanto pode espelhar culturas. Que luz foi abordada, como foram traçadas as linhas e distribuídas as cores. A partir de um ponto de vista podemos vislumbrar um lugar que pode nos revelar algum segredo, uma composição já vista, de como encaixar neste olhar a luz e a sombra, o finito e o infinito, o permanente e o transitório.

Dos momentos de encontros na rua com Bonson, talvez o mais emblemático tenha sido o de um sábado, no caminho para uma aula de italiano. O encontro na Praça em frente ao conjunto de casarões, os sobrados da rua dos Ilhéus, com Bonson sentado em seu banquinho, com parte do material espalhado pelo petit-­‐pave, a prancha com uma papel fazendo uma aquarela.

Paro para conversar e observar Bonson pintando. Comento que aquela hora era interessante para pintar, pois havia pouca gente na rua e podia-­‐se observar melhor a arquitetura e ter mais concentração na pintura sem interrupções. Nos olhamos e rimos porque eu estava justamente ali, conversando com ele no momento de pintar. Um fato peculiar que muitos dos desenhos e aquarelas são realizados nos finais de semana. As aquarelas da Escadaria da Igreja do Rosário, em 19/02/2000, é de um sábado de tarde, da rua Victor Meirelles, em 30/04/2000, é de domingo, do Mercado Público em 25/03/2001, um domingo, da rua dos Ilhéus, em 18/09/1999, um sábado. Um caso especial é o desenho de 25/12/1998, um dia de Natal. E fui para minha aula pensando na solidão do artista, perdido em seus pensamentos, na absoluta concentração que exige o ato de desenhar e pintar.

Mas pintar na rua é também interação. E é desta imersão que surge a reflexão sobre o fazer, sobre o que é este ato, o desenhar na rua, o plein-­‐air. É esta imersão que faz com que o artista precise incorporar os sons das ruas, dos cumprimentos, das conversas, das passagens das pessoas, os ruídos e a música no ar. E esta imersão no cotidiano urbano interage com a obra. O artista, no ato da criação, convive com os múltiplos olhares, com o olhar silencioso, com as opiniões, o elogio e a crítica.

Quando o atelier é a rua.

Caminhar pela cidade percebendo as transformações das cores, os pontos de vistas, as aglomerações e os espaços vazios. Alguns lugares tornam a inquietação mais constante. Uma necessidade de definir as distâncias, os ângulos entre as massas edificadas. Perceber os fundos com as diferentes luminosidades do dia. A luz que transforma cada instante num novo olhar. A permanência temporal do espaço edificado impulsiona uma maneira de registro. A efemeridade do cotidiano torna necessário o registro. No momento de sentar diante de uma cena não há mais retorno. A imagem em construção começa a ser inscrita sobre o papel. O desenho configura um olhar. As paredes da cidade começam a ser descritas através das linhas traçadas. As tintas diluídas sobre o godet indicam a formação de uma imagem colorida. Ela é feita de múltiplas visões, de técnicas expressivas, de composição, de rejeições e de afetos. As pessoas passam, a luz do dia transcorre em diferentes sensações. No papel preso à pequena prancheta um final chega a ser previsto. A pintura exibe as manchas de cores em processo de secagem. Os últimos olhares desafiam o encerramento. Hora de recolhimento. Talvez uma grande obra, talvez um estudo para uma obra posterior. Um olhar derradeiro. Talvez tenha sido uma última paisagem.

Mário César Coelho
Em dezembro de 2017


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